Transcrição da Entrevista de Eliakin Rufino

(Realizada dia 30 de outubro de 2019)

Onde você nasceu e como foi sua infância?

Nasci em Boa Vista, quando ainda era capital do território federal do Rio Branco, então sou Rio Branquense (risos), e depois só em 62 quando eu já estava com 6 anos, é que o território mudou de nome, um projeto de lei de um deputado federal que nós tínhamos lá, o Valério Magalhaes, ele é que apresenta esse projeto de mudança de nome pra não confundir com o Rio Branco- Acre e tal, e aí muda de Rio Branco pra Roraima, mas eu ainda sou do tempo do Território Federal do Rio Branco. Meus pais são amazonenses que vão pra lá, e… papai vai em 42, a mamãe vai em 45, e eles se casam em 47, e eu nasci em 56. E esse casal de amazonenses, eles tinham nas suas adolescências, eles tinham uma vida… é… eles não eram de Manaus, eles eram do interior do Amazonas, papai era do Manaquiri que é um grande lago amazônico, lá no Manaquiri ele era da beira desse lago, e a mamãe era do alto Solimões uma cidade chamada Jutaí, fica perto de Fonte Boa, na época dela ainda era município de Fonte Boa, depois que virou Jutaí, então esse casal vai pra Roraima, com essa bagagem aí, de interior do amazonas, de comedores de peixe, de canoa, de pesca, de…então eles, lá em Roraima eles compram uma casa também na beira do rio, porque eles precisavam disso, de canoa, dessa vida que eles tinham…e a minha infância é essa aí, a minha infância é andando de canoa, pescando, dormindo na praia, eu tenho uma infância , era uma infância muito é…um contato muito intimo com a natureza. Por isso que mais tarde eu vou me tornar um poeta da natureza…o “grosso” da minha obra gira em torno da questão da natureza.

Como foi sua infância em Boa Vista? quais foram suas lembranças?

Essa cidadezinha aí, pequenininha, o grupo escolar que eu estudava ali no Osvaldo Cruz, no Lobo Dalmada, e… meus pais da igreja batista, eram evangélicos, então tem uma, eu tenho esse circuito escola, igreja, biblioteca pública, que tinha uma pequena biblioteca que onde eu e meu irmão vamos ler, toda nossa formação é nessa biblioteca aí…e uma cidade ainda toda de rua de terra, andando de bike…eu tenho lembranças ótimas assim.

Fale sobre seus estudos?

Aí eu descubro a poesia nos livros e vou pra biblioteca atrás dos autores, e ainda antes dos 16 anos eu já tinha lido Castro Alves, Drummond, é…J G de Araújo Jorge que era um poeta que foi deputado Federal também e tal, eu li inclusive o Joaquim Cardoso que ele é um matemático calculista do Niemayer, e ele é poeta também, então, já nessa época eu já tinha leituras múltiplas, além da bíblia que era uma leitura obrigatória, do plano da igreja e tal, e na igreja tinha um programa pra você ler a bíblia em um ano, já vinha da onde ler até…todo o dia até ler…eu li a bíblia todinha, isso era uma das minha erudições (risos) em bíblia.

O secundário eu só fiz o primeiro ano lá em Roraima, porque naquele tempo não tinha lá o secundário, tinha um magistério, que formava professores de primeira a quarta série, e esse era o único secundário, era o magistério. Eu fiz ainda o primeiro ano, mas como meu irmão já havia saído pra estudar fora, em Belém tinha uma casa do estudante roraimense, eu também já sonhava com essa casa, meu irmão já tinha ido na frente, ele é 3 anos mais velho do que eu, meu único irmão, mas a mamãe achou que não, os dois juntos em Belém não ia, e numa casa do estudante com mais 30, ela achava que , ela não ficou muito satisfeita com …aí eu tinha um tio em Brasília, e ela me leva pra Brasília, aí esse menino da beira do rio ali pescando, vou pro planalto , seco, sem água, sem rio por perto…e aí foi um choque muito grande, eu fiz o segundo ano do ensino médio, num colégio chamado Elefante Branco, lá em Brasília, que era uma escola pública, mas não me adaptei muito nessa Brasília, Brasília tinha 13 anos de criação só… e eu 16, então não me dei muito bem com essa…era uma cidade de pessoas que estavam ligadas ao poder, era pouco habitada e tal, e eu fui conhecer Goiânia, me apaixonei por Goiânia que tinha mais cara de cidade, tinha centro, tinha vida cultural, tinha escritores renomados, já tinha uma história, Goiás tem um história desde de Goiás velho não é, Cora Coralina ainda era viva nesse tempo…então eu me apaixonei por Goiás, por isso tudo e mudei pra Goiânia e fiz o terceiro ano do ensino médio lá em 74, passei no vestibular, e em 75 eu começo a fazer jornalismo na Federal de Goiás, e vai indo tudo muito bem, até que no mês de outubro a Ditadura militar matar o Vladimir Herzog, que é um ano emblemático de perseguição da imprensa, é o ano de 75, e é o ano que eu começo fazer jornalismo, quer dizer, aí a minha família ficou preocupada, porque além da censura aos jornais, a perseguição a jornalistas e o assassinato de um jornalista em uma situação misteriosa, que eles dizem que ele se suicidou mas na verdade ele foi assassinado durante uma sessão de tortura e eu sou levado a abandonar o curso, porque a minha família temia pelo meu futuro e era fatalmente, o que ia acontecer comigo era mais ou menos algo assim, que eu já era rebelde, já fazia música, já fazia música de protesto, já participava dos movimentos é…e olha que já estamos aí na metade da ditadura que em 74 fez 10 anos, isso acontecia no decimo primeiro ano de uma ditadura que vai durar 20 ano, então a gente não sabia quanto tempo isso ia durar…eu abandono a faculdade e tenho um período de errâncias aqui pelo Brasil mesmo, a minha fase de ripe, e eu dou um grande role pelo brasil, principalmente aqui pelo nordeste, Eu faço boa vista Arembepe na Bahia, que era a meca dos Ripes, era Arembepe, aldeia Ripe de Arembepe, eu fiz Boa Vista Arembepe-Boa Vista, de carona nessa experiência Ripe que é uma experiência fantástica da minha vida também, conheço um Brasil de perto né, e é uma experiência muito radical, isso em 77, eu abandono a faculdade ainda em 75, passo 76 entre boa vista, Manaus, Belém e tal , e em 77 faço essa viagem mais radical, e quando volto, eu vou pra Venezuela e me auto exilo na Venezuela durante dois anos, foram anos bem difíceis pra mim, eu fui pra Venezuela sem dinheiro, sem documento e sem falar o idioma. Em 79 vem o decreto de anistia, eu tenho notícia de que todo mundo vai voltar pra passar o natal de 79 em casa e eu digo todo mundo, que voltou nessa época o Fernando Gabeira, Paulo Freire, Miguel Arrais, é ..Betinho, todo mundo que estava exilado, volta nesse momento e eu também, meio que acompanho, mesmo estando auto exilado, mas eu vivo isso também, e volto, passo no vestibular pra Filosofia na UFAM, e aí eu dou uma parada, até me formar eu fico em Manaus, durante cinco anos de 80 a 84, nesse período já havia um sentimento nacional de pôr fim a ditadura, que já tinha durado 16 anos, e eu me engajo nesse movimento, não só no movimento de ativismo político, mas em movimentos de defesa dos negros, que eu sempre me considerei negro, embora não seja preto, mas eu sou negro, e também nesse momento em Manaus está se formando o Movimento Alma Negra e eu me engajo também nesse movimento, no movimento na criação do jornal PORANTIM, que era em defesa dos índios, enfim eu volto pro brasil com sede de cidadania, com sede de mudar o país, e esses cinco anos em Manaus, e fazendo filosofia, então que era uma coisa bem diferente dos meninos de Boa Vista, que tinham saído pra estudar fora, saíram pra estudar veterinária, medicina, engenharia, então estudar filosofia já era uma coisa diferente, mas porque eu queria isso, eu queria ser um pensador da minha terra, então a filosofia veio a calhar. Moro em Manaus de 80 a 84, e regresso definitivamente pra Boa Vista em 85, de maneira que aquela minha saída lá com 16 anos em 73 pra estudar em Brasília até esse ano de 84, são 12 anos da minha odisseia fora de Roraima, eu tenho a infância e a adolescência lá, passo esses 12 anos fora e volto com esse diploma de filosofia, pra tentar fazer uma revolução em Roraima, essa revolução que vai se chamar Roraimeira que é um movimento cultural de busca da construção de uma identidade pra nosso povo porque, na época da ditadura, os militares colocaram no centro da cidade de Boa vista uma estátua de um garimpeiro, uma estátua gigante de um garimpeiro, sinalizando que ali era um garimpo né, e você sabe que garimpo, garimpo não tem caráter né, garimpo não tem personalidade, garimpo é faroeste caboco é terra de ninguém, é lugar de exploração, é lugar de saque, e aí eu não queria esse destino pra minha terra, né esse destino de currutela de garimpo.

Na sua opinião, como o Brasil enxerga Roraima e como Roraima enxerga o Brasil?

Roraima é um município do Amazonas, do estado do Amazonas, e quando foi transformado em território nacional do Rio Branco em 43, com esses pensamentos aí de geopolítica etc. de fazer uma área de segurança nacional, acontece uma coisa estranha com esse território federal e com essa cidade de Boa Vista, que é, as autoridades eram nomeadas, mesmo antes da ditadura, o território federal ele tem uma existência de 47 anos, 27 anos de governo civil, e 20 de governo militar, e em ambos os governos, tanto no militar quanto no civil, as autoridades, prefeito e governador, eram nomeados, chegavam de fora, eram pessoas de fora nomeados por alguém pra ser governador, e a população local, indefesa, refém dessa situação, não tinha como contestar essas autoridades, a não ser bater palma, aplaudir, curvar a coluna vertebral né, são autoridades que chegavam sem gozar da simpatia de ninguém e sem querer ser simpático a ninguém, que estavam nomeados, o cara chegou nomeado a governador, a mulher dele já virava logo a primeira dama, e ele mandava e desmandava, e era uma sucessão de governadores, tinha governador que passava 4 meses, outro 9 meses, 1 ano, então nada tinha continuidade, nada , não tem nada que tenha continuidade nesse momento, a não ser a corrupção, a corrupção que é permanente nesse 47 anos aí.

Como foi a migração nos anos 80?

Migração de brasileiros, porque quando o território federal foi criado, passou-se a oferecer empregos públicos federais sem concurso, então gente de todo o brasil ao saber disso, olha tem um território federal lá que é só chegar e se empregar, e as pessoas iam pra lá, porque era só chegar e nem precisava de diploma, vinham de todo o brasil, gaúchos, todo o brasil tem alguém lá em Roraima. Agora coisas graves acontecem, como não tem concurso público, Roraima vai virar o que ? um paraíso de diplomas falsos, porque a pessoa chega lá com um diploma e se emprega num emprego público federal, passava uns dois anos do estágio probatório e depois pedia uma redistribuição pro seu local de origem, Roraima passou a ser um lugar onde as pessoas iam garimpar empregos públicos federais, ou seja, o garimpo que tinha sido de ouro e de diamante, passa a ser agora um garimpo de empregos públicos federais, sem concursos e com diplomas falsos, e quem não tinha diploma se empregava também, por exemplo na área da educação. Eu quando voltei em 85, que já somos os três últimos anos do território federal, que a constituição de 88, acaba com o território federal e cria o estado, quando eu voltei em 85 ainda era isso, só que eu cheguei com o meu diploma de filosofia, feito em pergaminho, em pele de carneiro, um diploma lindo mas que eu entrei numa fila pra me empregar lá na secretaria de educação, em que tinha pessoas sem diploma que se empregaram com o mesmo salário que eu com o meu diploma de filosofia de licenciado, eles faziam uma prova de suficiência, chegavam lá, eu quero dá aula, de que? Do que tiver pra dar aula aí, eu quero dar aula. Você tem que diploma? nenhum, então você vai fazer uma prova de suficiência, está aqui o conteúdo, quer dar aula de história? quero. Está aqui o conteúdo, escolha um assunto e venha dar uma aula pra gente. Eles montavam uma sala permanente de técnicos da educação, aquela fila de gente pra fazer a prova de suficiência, a pessoa chegava lá e dizia, aqui Capitanias hereditárias por exemplo, e tal, cinco minutos, a comissão achava, você tem jeito, ta bem, emprega como licenciado…assim que era a realidade de Roraima que eu chego lá em 85. Então eu nas férias em Manaus eu ia muito lá, aquela estrada, nesse tempo a BR 174, não era asfaltada, você poderia demorar de 1 a 3 ou 4 dias na estrada pra chegar entre Boa Vista e Manaus, que é também outro escândalo de corrupção, o dinheiro todo roubado. Mas essa minha chegada em Roraima e encontrar essa situação de Roraima dominada por migrantes de outros estados, é ..com essa facilidade de se empregar e de assumir as lideranças lá, então é um trabalho que eu começo aí, aí é que vai me mover pra começar pela arte, pela cultura um movimento de construção da identidade.

O que acontece a partir de 84?

Nesse ano de 84 que é meu último ano de faculdade em Manaus, acontece um festival de música lá em Boa vista, e o Zeca preto que é um paraense que mora lá, ele faz uma música chamada Roraimeira, ele inventa essa palavra, e eu fico surpreso que a letra da música me homenageava, a letra da música falava no meu nome ne , a semente do poeta Eliakin, ai eu sabia da existência do Zeca Preto, mas como eu morava fora, não tinha muito contato com ele, mas sabedor da música, já me aproximei e tal, a música ficou em segundo lugar, nesse festival de música, e embora não tenha sido a vencedora, mas ela caiu no gosto da população porque é a primeira música que fala das nossas coisas e que tem uma visibilidade por causa do festival, eu já compunha coisas regionais, mas nunca a gente tinha uma plateia tão grande como… e o Zeca preto já vinha fazendo música regional, tinha acontecido um outro festival quatro anos antes em 80, e ele também tinha ficado em segundo lugar, com a música chamada macuxana, onde ele mistura macuxi com wapixana, e ele sempre foi dado a essas neologias, essas aglutinações aí, e Roraimeira é mais ou menos isso, ele inventa essa palavra, a música tem uma repercussão muito grande na cidade, eu regresso pra Manaus pra fazer meu último semestre em filosofia, e prometo a eles dois, ao Neuber e o Zeca, que eu vou articular um show pra gente lá em Manaus, que eu já fazia shows lá em Manaus, já estava com um nome, já tinha feito show no teatro amazonas e tal. E é justamente o teatro amazonas que eu consigo, de maneira que o primeiro show Roraimeira já é logo no Teatro Amazonas, em agosto de 84, e nós conseguimos o apoio do governo do território pra … e eles tiveram uma ideia também de mandar uma exposição de artistas plásticos pra botar no hall do teatro, um coquetel e em seguida um show Roraimeira, então foi uma grande noite Roraimeira em Manaus naquele agosto de 84…e eles voltam pra boa vista o Neuber e o Zeca, e pela primeira vez eles alugam o único cinema da cidade, e nós fazemos o show roraimeira em outubro do mesmo ano no Cine Super K, que era um cinema de 800 lugares que tinha em boa vista, que mais tarde a Universal vai comprar e vai fechar porque o Edir Macedo, ele começou uma cruzada de fechamento de cinemas e teatros pra transformar em igrejas universais. Aí perdemos o nosso único cinema, mas antes de perdermos fizemos o show Roraimeira.

Saiu na imprensa, a folha de Boa Vista está aí no seu décimo número, está começando a folha, ou seja, nesse momento, você vê que o único jornal impresso está nascendo aí também junto com o roraimeira, então a coisa toda estava começando nesse momento aí.

Qual era a relação de vocês com o jornal, com a imprensa?

Nesse momento boa ainda, inclusive quatro anos depois que Roraima vira estado em 88, eu passo a escrever os artigos de opinião na Folha, porque naquele tempo esses jornais e até hoje, muitos jornais assim da periferia do Brasil, do interior do Brasil, eles importam uma coluna de opinião, naquele tempo tinham uns caras que escreviam Rio e São Paulo e vendiam o artigo pro Brasil todo, que não tinham nada a ver um artigo lá , um artigo da folha de são Paulo saia na folha de boa vista, às vezes com um assunto alheio a nossa realidade, e eu convenço o dono do jornal de que eu poderia fazer artigos mais locais, da nossa realidade e mais suscetíveis, de serem não só lidos pelo leitor de lá, mas também provocar a mudança de mentalidade que eu pretendia na população, então via o jornal como são duas coisas eu comecei…porque quando eu larguei aquele jornalismo lá, em 75 lá em Goiânia, eu larguei a faculdade de jornalismo mas eu não larguei o jornalismo, eu continuei, eu sou jornalista, eu tinha vocação pra isso também, então quando eu vejo essa oportunidade, volto pra boa vista eu passo a escrever artigos pro jornal e fazer programas de rádio porque a música local não tocava, não tinha espaço, em vez de tá pedindo pra ir pra radio eu resolvi logo conseguir um espaço na rádio, e durante 10 anos eu vou fazer programa de rádio também, tenho fitas cassetes com esses programas gravados, era meia hora de programa, a fita tinha uma hora, eu gravava um programa de cada lado da fita, e guardei essas fitas, estão guardadas, muitas delas ainda, que é uma memória não só musical dessa época, como é também uma memória dos acontecimentos culturais, porque o programa era de noticiar a vida cultural de Roraima. E a partir daí essa identidade começa a se configurar.

Qual era a marca principal do Movimento Roraimeira?

Era a valorização da cultura indígena porque, até então cultura indígena, e até hoje há um racismo muito grande em Roraima em relação aos índios, racismo exagerado, tão exagerado ao ponto que em 2005 quando, o presidente Lula demarca a reserva indígena raposa serra do sol, a elite local decreta um luto, Roraima estava de luto porque os indígenas tinham conseguido de volta um pedaço de uma terra que um dia foi deles, e essa valorização da cultura indígena, nós passamos a incorporar palavras indígenas nas letras das musicas, nos aproximamos das lideranças indígenas, e isso cria também um vínculo de luta em defesa dos povos indígenas de Roraima que vai redundar em várias conquistas, como essa conquista da demarcação da raposa serra do sol. E também valorizamos não só a questão da cultura indígena que eu passei a considerar como a nossa ancestralidade cultural mais genuína, mais legitima, mais autóctone, mais autentica também, como também passamos a valorizar a outros traços locais, como a da culinária, a paçoca com banana. A paçoca com banana naquele tempo se comia, não vinha nem pra mesa das famílias… se comia na cozinha, paçoca era uma coisa que se comia na cozinha, e hoje paçoca vende nas ruas de boa vista, é movimento Roraimeira, hoje paçoca vende nas ruas, vende em copinho plástico pra pessoa comer com uma banana, é um lanche hoje vendido na rua, e claro que nós num primeiro momento, a população, também teve parte da população que simpatizou com o movimento mas parte reagiu assim, mas ei o que é isso ? falando de índio ? só pra ti ter uma ideia dessas reações negativas, quando eles sacaram essa ligação entre o Roraimeira e as populações indígenas e os direitos indígenas, já em 95, quando eu apareço pela primeira vez na rede globo, no programa da Regina Casé no Brasil legal, eu apareço cantando “Tudo Índio Tudo Parente”, a minha composição que trata de índios num contexto urbano, e talvez eu seja o primeiro compositor a tratar de índios no contexto urbano porque geralmente quando se faziam musicas que falavam de índio eram índios na floresta, índio na maloca, índio caçando e flechando, e eu trato de índios que estão vivendo numa situação de sub empregos, são garçons, são baleiros, são pedreiros, são desempregadas domesticas e tal , e quando eu apareço no programa da Regina Casé, no Brasil Legal, na Rede Globo, a reação em boa vista não é de aplauso, é de decepção dos racistas, eu saía na rua no outro dia, e diziam: pô Eliakin tu vai aparecer na globo com negócio de índio? tanta coisa aqui pra tu falar ! O Zeca preto chega até fazer uma música em que ele enxota as coisas, pra lá pêra, morango, vamos comer é as nossas frutas daqui, então há uma embate também né com parte da população que achou aquilo ali ….agora por outro lado nós valorizamos muito também a beleza natural e fizemos com que o show fosse de divulgação turística de Roraima também, cantando o Monte Roraima o lago do caracaranã, todas as belezas que são atrativos turísticos e isso foi o que emocionava também as pessoas, porque eles passavam a ouvir uma música que falava das coisas dali, falavam dos índios mas também falavam da paisagem natural, e não só da biodiversidade mas também da sócio diversidade, porque naquele momento nós já tínhamos lá a presença dos Guianenses, uma pouca presença de venezuelanos, brasileiros de todas as partes do brasil e as populações indígenas. Então por si só isso já é um caldeirão cultural riquíssimo e ao mesmo tempo com uma dificuldade de se encontrar, a crise de identidade vem daí dessa diversidade, e nós somos o primeiro a dizer que a identidade de Roraima é a diversidade, ao contrário de pessoas que levavam pra lá esquemas teóricos de procurar a identidade em alguma coisa, nós dissemos não, não é nessa e naquela, não é isso ou aquilo, tudo isso é identidade de Roraima, é essa a diversidade, é esse caleidoscópio aí é que é a nossa identidade, eu penso que isso aí é a grande virada do Movimento, quando a gente aceita essa pluralidade essa multiculturalidade sem excluir nada. O movimento é um movimento de acomodação de diferenças, sem exclusões, ou seja, o movimento já era um movimento de inclusão antes da moda, depois que chegou essa moda da inclusão da política de inclusão, o roraimeira já tinha essa política de inclusão.

Por quem vocês foram influenciados quando começaram esse movimento?

Eu como sou uma espécie de mentor intelectual desse movimento, que aí eu venho com essa carga de Filosofia e era artista também, então a minha participação no movimento ela se dá de duas maneiras, ela se dá como esse pensador do movimento aí e como artista. Então como artista a minha contribuição com o Movimento são com obras de arte, são com musicas e com poemas, mas como intelectual do movimento a minha participação é de fundamentar teoricamente o Movimento, e eu vou fundamentar esse movimento roraimeira inspirado principalmente no modernismo brasileiro, e eu até digo que o roraimeira é modernismo tardio, que o modernismo acontece em são Paulo em 1922 e só chega em Roraima em 1984, 85 (risos), ou seja, demora a chegar, até atravessar o Brasil todinho chega lá. Mas o Roraimeira tem uma inspiração modernista muito grande, nesse sentido de produzir uma obra de arte que tivesse a nossa cara, mas que não fosse xenófoba, que não fosse bairrista, que não fosse língua do mato, que não fosse essa coisa fechada, e era isso que o Modernismo era também, o modernismo era uma coisa aberta. Eu sou uma espécie de Mario de Andrade do Roraimeira, que o Mário também era poeta era musico, era um intelectual também ele começa a ajudar nesses conceitos de patrimônio público, ele que colabora com o ministro Gustavo Capanema na época, de bolar uma primeira política cultural também pro Brasil, eu já sabia disso tudo, eu já vinha lendo isso tudo. E um outro movimento que me inspira muito por tabela, era o movimento tropicalista de Gil e Caetano, de Torquato neto, que também era um movimento parecido com o modernismo, só que com uma característica um pouco diferente que se aproxima mais da gente do Roraimeira, que é também essa coisa de não excluir nada. Eu me lembro que uma vez perguntaram do Caetano Veloso se entre o violão e a guitarra elétrica com qual ele ficava, ele disse que ficava com os dois, e nós vamos fazer isso lá em Roraima também. Então eu penso que assim as bases inspiradoras do movimento são esses dois movimentos nacionais.

Existe uma coletividade artística no Roraimeira?

Eu o Neuber e o Zeca nos destacamos devido à música, mas outros artistas estão ali agregados com gente, artistas da fotografia da dança, das artes plásticas, da literatura, por isso que tem esse nome de movimento, alguém uma vez me perguntou mas Eliakin Movimento não é uma coisa coletiva, eu disse e é exatamente isso mesmo que é, eu falei em nome do movimento e o trio roraimeira formado por Neuber Zeca e eu, somos mais identificados como o Roraimeira, mas não é o movimento todo, ali é uma parte do movimento, é a parte musical, é a trilha sonora do movimento que está ali, mas o movimento é amplo, o meu irmão por exemplo tem uma participação como artista plástico do movimento revolucionário pra Roraima, o palácio da cultura inaugurado pelo então brigadeiro Ottomar de Souza Pinto em 1993, aqueles painéis cerâmicos com grafismos indígenas são do meu irmão, é a primeira vez que uma obra de arte num prédio público tem uma inspiração na cultura indígena e é autorizada pra fazer. Os painéis do Hemocentro do palácio da justiça são do Eliezer também.

O Movimento utilizava obras de artistas para compor? ou era os pintores que se inspiravam na música de vocês?

Era mais o contrário, e tem os fotógrafos que nos acompanhavam e que registram isso tudo que é o Wankler Carmo e o Jorge Macedo principalmente. O Jorge vai fazer todas as capas de discos, livros, fotos de Show e também começa a fotografar a paisagem de Roraima, ele não usa estúdio , ele só fotografa em ambientes externos com luz natural, então somando isso tudo, fotografia, artes plásticas, literatura, música, dança, eu mesmo tenho uma participação na área da dança, quando eu monto um grupo chamado Fibras Tensas e invento uma dança chamada Zoodanca, em que os bailarinos reproduzem os gestuais dos animais amazônicos né, que 20% dos animais do planeta vivem na Amazônia, então é natural que surgisse uma dança de inspiração indígena também que os índios tem muita danças para animais sagrados, e os fibras tensas é isso, esse meu grupo fibras tensas, nós dançamos em Joinville em 90, é o primeiro grupo de dança a ir pra Joinville que é o maior festival de dança do Brasil, com a zoodança, com essa expressão aí nova da dança.

Com todo esse contexto histórico que você comentou da ditadura, houve discurso na música do Roraimeira sobre cidadania ou foi mais sobre as belezas de Roraima?

Não, o nosso compromisso foi sempre com a estética, então por exemplo eu que tinha mais essa vocação pra criticar, e a formação filosófica pra criticar, tudo que é música crítica, música mais de crítica social e política, fica pra minha carreira solo, eu não ponho no Roraimeira, mas continuo fazendo, por exemplo, “tudo índio tudo parente”, é uma música dramática né, que fala da situação dos índios em Boa Vista, mas essa música nunca foi tocada no show roraimeira, anos mais tardes que ela se tornou um sucesso é que eu coloquei no show roraimeira, mas inicialmente não, inicialmente a ideia não era mostrar a tragédia mas era mostrar só a beleza de Roraima, pra que o show fosse de divulgação turística, e sem nenhum patrocínio de nada, muitos dos discos roraimeira, vinham com a frase “faça turismo em Roraima”, por iniciativa própria nossa.

Qual era o olhar do Estado nesse período? Ele se apropriou do Roraimeira?

Olha, como o Movimento Roraimeira nasce ainda no finalzinho do território federal, ainda com esses governadores nomeados e com mandatos muito curtos. Em 85 tivemos a experiência do Getúlio Cruz que foi o primeiro roraimense a governar durante pouquíssimo tempo, e ele já saiu e depois chegou um General, e depois por último foi o Romero Jucá que foi nomeado governador lá e ficaria e tomaria Roraima pra sempre, ou pelo menos durante os próximos 30 anos, ele foi ser senador a esposa foi ser prefeita, a Tereza ele é campeã, ela é recordista nacional de mandatos de prefeita, são cinco mandatos de prefeita, são 20 anos de prefeita, então isso é um atraso pra Roraima né, Romero 28 anos senador, ela 20 anos prefeita, é um atraso com relação ao nosso movimento, eles fizeram coisas legais pra Roraima, trouxeram recursos, construíram algumas coisas e tal, mas nessa área da cultura, eles não tem nenhum tipo de apoio, e quando vira estado e há uma eleição, quem é eleito, é eleito um governador da época da ditadura, um militar, que é o brigadeiro, ele é o primeiro governador eleito, ele é uma espécie de Getúlio Vargas de Roraima, o pai do povo, que distribuía rede, distribuía panelada, ele trouxe várias pessoas do maranhão, Roseana Sarney ficou uma arara com ele (risos), criou os bairros. Olha pra ti falar a verdade, nós nunca tivemos muito apoio assim governamental não, a não ser uma passagem aérea aqui, quando a gente era convidado pra um grande evento assim e outra ali, um cachezinho ali, mas nunca teve um apoio, porque a elite política e econômica de Roraima eles são racistas, é, essa elite é racista, então o Movimento ao ter essa opção preferencial pelas populações indígenas, já vai mal com essa elite… se você fizer uma busca você vai encontrar um artigo meu que está na net desde 2005 que chama Elite Enlutada, que é esse luto da época da demarcação e eu faço um artigo que é um artigo legal de você ler, e é bem explicativo sobre essas atitudes da elite local é… nem vou muito longe e mesmo com todo o movimento, mesmo com tudo, quando eu saí de Boa Vista agora a semana passada, eu presenciei um evento lá na assembleia de 30mil garimpeiros que querem a abertura do garimpo agora, agora, assolados pelo novo presidente que prometeu a eles que abriria garimpo em terra indígena, que acabaria com a Amazônia e tudo mais, então tá essa pressão agora na Assembleia pra garimpo em área indígena, ou seja, pra acabar com tudo, é extrair a madeira da superfície da terra e cavar um buraco pra ir atrás do minério, então extrair a madeira e extrair o minério, vai ficar só o buraco, não vai sobrar nada, rios poluídos, o mercúrio contamina e entra na cadeia alimentar através da alimentação do peixe… o que se desenha agora, nós retrocedemos agora, em 84 quando começamos o Movimento Roraimeira a situação era essa, aí tivemos um avanço muito grande, o próprio Collor quando foi presidente, ele mandou dinamitar as pistas clandestinas que abasteciam os garimpos, aí que teve uma estabilidade durante esses 15 anos do governo do PT, Roraima meio que se estabiliza e tal, mas agora nesse primeiro 10 meses desse novo governo que eu me recuso de até dizer o nome desse presidente, o governo do inominável, agora as mesmas situações, essa realidade que impulsionou o movimento ela agora volta de novo, a ameaça a floresta, aos povos indígenas, a contaminação, aquela corrida do garimpo, volta tudo isso e agora não há mais o Movimento Roraimeira pra fazer, já está feito, agora a população tem que reagir e eu vejo que nós avançamos mas não avançamos muito, porque por exemplo, a nossa música não toca nas rádios locais, ainda hoje não toca, quando eu parei de fazer o programa a música parou de tocar, nem a rádio da Universidade, a rádio Universitária, tem dois programas de grande audiência, um é dedicado a Raul Seixas, que eu acho que nem na terra do Raul Seixas tem um programa dedicado a ele, mas em Boa Vista tem na rádio Universitária, que tem um curso de música na Universidade, então a rádio Universitária deveria estar inclusive abrindo espaço para esse contingente aí de professores e estudantes de música, e muitos dos estudantes de música da universidade, são músicos que atuam na vida da cidade, Euterpe por exemplo é estudante de música, o Vitor Pianne é estudante de música, são músicos que atuam na cidade que estão tentando ter uma formação profissional, mas a rádio não toca e as rádios sem ser a rádio universitária, as outras rádios tem dono, uma é do deputado, outra é do Senador, outra é da Prefeita, então aí que eles não tocam mesmo, eles não vão tocar uma música que está protagonizando a cultura indígena por exemplo, ou o que está fazendo alguma reação aos projetos deles lá. O roraimeira faz mais sucesso fora de Roraima do que em Roraima. O último show do roraimeira fora assim pra um grande público foi em Curitiba, agora em 2016, no espaço da Caixa, uma produtora de Curitiba que era fã do roraimeira fez um projeto e foi aprovado e nós fomos fazer três noites em Curitiba, casa lotada, as pessoas amando o Show, perguntando por essas palavras estranhas, parece até que é outro idioma e tal. E há sempre essa curiosidade boa das pessoas em relação a Roraima, e nós estamos desfazendo também aquele mito, que em boa vista os índios andam na rua, as cobras os jacarés, as onças, o pessoal tem ideia de que lá é um lugar inóspito, ermo, selvagem. A própria rede globo há três anos atrás fez uma novela em que o Monte Roraima aparecia como um mundo perdido, aquele lugar inacessível, então a coisa ainda continua, fizemos um avanço, mas só até onde pudemos alcançar, porque dar murro em ponta de faca sempre a mão vai sair ferida.

O Estado se apropriou de algum salva guarda, existe algum arquivo?

Não, nem nosso, nem de ninguém, o equipamento cultural de Roraima nesse momento, está em ruínas, está abandonado, são ruínas, o teatro Carlos Gomes, que eu sempre digo que o maestro esta dando voltas no tumulo, porque tem um teatro com o nome dele, que desrespeita até o nome do maestro, que foi um grande maestro, que inclusive contribuiu pra Amazônia, o maestro Carlos Gomes morreu em Belém, quando voltou da Itália veio morar em Belém, e o teatro Carlos Gomes, isso tudo no centro histórico da cidade né, o teatro Carlos Gomes é uma ruina, a casa de cultura que já foi palacete governamental e tudo, é uma ruína, o museu é uma ruína, o cupim tá comendo o acervo, a galeria de arte, que era aquela galeria no parque Anauá linda e tal, foi agora, é o comando da guarda nacional, da força nacional, eles ocuparam a galeria de arte que agora é um escritório da força nacional, não tem nada guardado. Não há memória, a única coisa que o estado fez, só pra fechar esse assunto, foi em 2008, um presidente da assembleia, resolveu tombar o meu poema “Cavalo Selvagem” como patrimônio publico do estado e a música “Makunaimando” do Neuber e do Zeca, são por decreto em 2008 considerados patrimônio publico do Estado de Roraima, o poema e a música, mas é só.

O movimento Roraimeira produziu algum manifesto?

Nós chegamos a escrever um manifesto assim a várias mãos, que eu até li num show uma vez, mas não foi uma peça que teve vida própria ou que foi depois divulgada, foi um manifesto mais ou menos cultural e um pouco político também, eu até guardei até um tempo, eu tinha uma cópia dele mas não sei onde tá, que tinha umas coisas assim “ou a gente é Roraima ou não é”, umas coisas assim de afirmação e tal, mas é nada oficializado. Na verdade o manifesto do movimento são as obras que se destacaram, tipo o “cavalo selvagem”, o cavalo é uma espécie de manifesto porque ele homenageia o rebanho de cavalos selvagens que existe, na realidade em Roraima, e ele é também um hino de liberdade, que eu sempre considerei que depois da vida, liberdade é o segundo bem mais importante pra um ser humano é a liberdade, então o cavalo tem essa conotação política também, não é só uma homenagem a um atrativo político, é também um posicionamento libertário diante do que estava acontecendo.

Se fossemos dividir em períodos o Roraimeira de 1984 a 2000. Quantos períodos seriam?

Eu acho que dois grandes períodos, esse período que vai de 84 a 2000, que foi quando nós anunciamos inclusive na imprensa o fim do Movimento, e depois nós vamos retomar, mas não com a mesma intensidade dos primeiros 16 anos, de 2000 pra cá nós vamos, retomar mas aí já cada um com sua carreira solo já bem consolidada, e mais ou menos ajustando isso aí, como levar adiante a ideia e como tocar sua carreira solo. Eu por exemplo, uma coisa que o Roraimeira passou a me incomodar com o passar dos anos foi essa, esse compromisso só com a estética, e eu muito crítico, então eu achava que não eu tinha que colocar, que eu tenho músicas como “o mosquito da malária”, que é bem humorada mais é uma porrada, que não cabia no roraimeira, então eu pra valorizar essa minha criação mais crítica, eu também sou um dos primeiros a abandonar o barco do roraimeira, assim de dedicação muito grande, pra poder cuidar também da minha obra das minhas musicas e tal, mas aí nós vamos de 2000 pra cá, as retomadas já são mais esporádicas, nós em 2008 fomos premiados pelo projeto Pixinguinha que é a última edição do Pixinguinha, trigésima edição do Pixinguinha, que eles mudaram, não era mais uma turnê, era a gravação de um disco, e aí nós fizemos esse disco que se chama “Roraimeira – Canto de Roraima” com o patrocínio da Funarte, projeto Pixinguinha, temos cinco musicas de cada um no disco, todo gravado em Roraima, sempre aproveitando a mão de obra local dos músicos, acho que quase todos os músicos tocaram com a gente, viajaram com a gente, eu levei músicos pra Alemanha né, o Neuber e o Zeca foram pra suíça levando musicas de Roraima, e todos os shows do Brasil, sempre foram com músicos de Roraima. A gravação do meu DVD solo por exemplo em 2008 lá no Itaú cultural em são Paulo, fui com a banda toda Roraimense

Qual a estética do Movimento?

Tem sim a estética, eu passo a encomendar de costureiras a confecção de roupas com bordados dos cavalos selvagens, dos buritizais, a gente vai valorizando tudo que era nosso, porque o foco do movimento era valorização do que é nosso. Se tivesse que reduzir tudo o que é Roraimeira: é valorização do que é nosso, sem xenofobia, sem bairrismos, mas valorizando o que é nosso. É tipo botar o pé e dizer, daqui pra cá é nosso, aí a gente não abre mão, foi mais ou menos isso que é o Movimento Roraimeira, tem uma série de elementos que configura uma cultura roraimense própria ali que tem a sua expressão, fruto dessa diversidade, então isso é nosso, isso não existe em nenhum outro lugar, só está em Roraima.

Isso, essas musicas só foram compostas por causa dessa diversidade, ao mesmo tempo que é uma afirmação é um reconhecimento. Já tem, já tem a pizza roraimeira (risos), faz uma semana agora que eu postei uma sanfoneira de 13 anos, tocando nossas músicas, “Pimenta com Sal”, “Netos do Nordeste”, já é uma terceira geração do roraimeira.

Artistas indígenas foram valorizados pelo Roraimeira?

Sim, se entusiasmaram com o movimento, a Carmézia Emiliano, hoje é a pintora mais importante de Roraima, Macuxi que pinta só a comunidade indígena dela até hoje , e eu sou inclusive uma espécie de padrinho da Carmézia, eu que dei as telas os pinceis pro primeiro quadro pro primeiro trabalho, então teve um tempo que se falava brincando que a minha casa era uma espécie de Secretaria Informal da Cultura, porque lá em casa era que tudo rolava, as discussões os encontros, já tinham três artistas lá em casa, que era eu a Vania e o Eliezer, então já éramos três, e isso foi se aglutinando, nós temos muito isso de ajudar alguém de valorizar, de dar uma musica pra gravar, o próprio Alisson Cristian, ele começou a carreira dele com 14 anos também e ele grava Cidade do Campo que vai virar o RIT da vida dele, e um dos grandes sucessos do roraimeira.

Você foi convidado a administrar alguma área da Cultura do Estado?

Fui convidado, quando o governador Ottomar inaugurou o palácio da Cultura em 93, ele me convidou pra dirigir o palácio da cultura e fazer uma revolução lá também.

Foi péssimo, eu só passei um mês no cargo (risos), uma é que eu não tenho muita vocação pra isso ne, eu sou um professor e sou um artista, eu nunca tive essa vocação pra esta gestando prédio público, alguma coisa assim, e como eu nunca fui metido no partido, esses cargos geralmente são dados por alguém que fez campanha, eu pelo contrário, eu tinha feito campanha contra o Brigadeiro Ottomar, então quando ele me nomeou pra o cargo de diretor do palácio da Cultura, houve uma reação entre os dele mesmo, do partido dele, que já tinham nomes, que pensavam que ele iria nomear e ele terminou me convidando, que o Brigadeiro me respeitava muito, e eu só passei um mês lá no palácio da cultura, porque foi muito boicote, muita gente insatisfeita querendo puxar o tapete, e aí eu fui lá com o brigadeiro e disse olha brigadeiro, eu não tenho vocação pra esse tipo de picuinha assim política e tal, estou fazendo o meu trabalho e vou preferir que o senhor dê esse cargo pra alguém que vai fazer aí o trabalho, então eu vou preferir mesmo continuar autônomo e independente… porque ao aceitar um cargo desse, tu já te coloca numa situação de enquadramento político né, e talvez foi bom minha decisão de, quando vi que a coisa não ia caminhar, eu já pedi demissão. E mesmo na minha atividade docente, eu dei aula dezessete anos nas escolas publicas e treze anos na Universidade, nesses trinta anos eu nunca assumi assim nada de gestão, eu sempre estive na sala de aula, eu sou um profissional da sala de aula, eu sou um professor mesmo, e dei aula em todos os níveis, no ensino fundamental, no ensino médio, e na Universidade.

Como você vê hoje esses jovens do ensino médio e fundamental em relação a cultura de Roraima? eles se apropriaram dessa identidade?

Hoje sim, eu mantenho uma visita permanente as escolas por iniciativa própria, eu me lembro que o grande poeta Gonçalves dias, na época ele foi ao imperador pedir uma carta um salvo conduto ele fazendo uma viagem pelo brasil, e o imperador nomeou ele como “o visitador das escolas”, e eu inspirado no Goncalves Dias, eu sou o visitador das escolas mesmo sem o mandato do imperador, há muitos anos eu vou, sempre eu estou na escola, fazendo show, fazendo palestras, vou promover o milagre da mudança de mentalidade, e eu acho que as crianças, os adolescentes eles são fundamentais, taí a Anne Heloisa, sanfoneira de 13 anos tocando a nossa música, taí a Kaline Barroso, nossa diretora teatral, ela me disse que eu visitei a escola dela, quando ela tinha 9 anos, e ela credita a mim essa, esse ponta pé inicial aí, pras artes pra cultura, pra despertar, então eu continuo na minha atividade de visitador das escolas pra que o movimento não pare nesse sentido de angariar novos aliados, e entre essa geração mais nova, que tem mais chance do que uma pessoa que já é racista ou que já é antibiótico né que quem é contra vida é antibiótico, então o roraimeira também tem esse trabalho de lutar contra as pessoas antibióticas.

Atualmente você não foca mais na estética, apenas na crítica?

Foco na estética, mas agora já não deixo mais de ser crítico. Porque quando o poeta fala é porque já é impossível ficar calado, geralmente o artista de modo geral tem compromisso com a beleza com a estética, mas quando tu te pronuncia, eu vi esses dias agora o Paulo coelho se pronunciou contra o presidente, ele disse isso também, eu fiquei calado até agora, mas não da mais, posso até perder leitores, como eu também, a minha decisão foi assim, eu posso até perder, gente que gostava do roraimeira só estético só as belezas de Roraima, mas entre perder parte do publico e afirmar essa crítica pertinente, necessária e oportuna pro momento eu prefiro correr o risco.

Em relação as pesquisas na Universidade sobre o Roraimeira?

O meu irmão mesmo fez um mestrado sobre a poética de Resistencia do movimento roraimeira, porque no final das contas é um movimento de resistência, é um movimento de afirmação da Identidade mas ele estudando agora ele foi ver que é um movimento de resistência, e tem um outro professor de Musica o Marcos Vinicius que ele também fazendo uma pesquisa descobriu que essa característica de resistência do movimento, porque no ano de 84, o ano que começamos o movimento é o ano que os gaúchos estão montando o CTG lá em Roraima, e nas cidades do Mato Grosso, aonde os gaúchos chegaram com o agro negócio e montaram seus CTGs, essas cidades mato grossenses hoje giram em torno da cultura Gaúcha, não tiveram o Roraimeira pra fazer a resistência, inclusive é a cidade desse professor, ele me contou que a cidade dele gira em torno do CTG da cidade. Eu só vim saber que o CTG foi criado em 84, agora , na época eu não tinha isso claro, porque o nosso alvo não era o CTG, nós não criamos o roraimeira pra resistir ao CTG, por acaso isso aconteceu e foi bom também né, mas os objetivos do Movimento eram outros, mas que hoje vendo que ele serviu de resistência senão os gaúchos teriam dominado Boa Vista também, eu já acho também que essa parte da resistência foi perfeitamente válida, e algo que não havia sido pensado mas que se realizou

Quais seus projetos pessoais atualmente?

Tenho sim, por exemplo nesses anos de 2016 a 2018, eu estava com o meu espetáculo solo chamado “Pajelança Poética”, que é uma pesquisa que eu fiz sobre a Pajelança das religiões indígenas, e montei uma solo performance que evoca a pajelança indígena, sem desrespeitar claro porque é uma manifestação religiosa, mas eu criei uma espécie de pajé poeta, em que eu faço um ritual de pajelança poética onde os textos todos são com a temática indígena e ambiental… e fiz muito esse espetáculo, eu mesmo faço a trilha sonora da performance com instrumentos indígenas, não uso nenhum instrumento que tenha atravessado o mar, só instrumentos indígenas, fabricados aqui na Amazônia, que é essa a minha dedicação à questão indígena também, eu tenho sangue indígena, e tem até um poema meu que diz que todo o brasileiro é índio na verdade, todos nós temos o sangue indígena, só que algumas pessoas sentem isso é…como aquela história não ele tem veia poética, pode até ter veia poética, mas não tem sangue poético. É como eu, eu tenho veia indígena e tenho sangue indígena, não posso me furtar a essa luta eu não posso ver a bomba cair na comunidade indígena e eu ficar cantando o Beija Flor, eu tenho que me pronunciar.

Você vivenciou Roraima dos anos  70, 80, 90 e agora está vivenciando uma nova Roraima, como é o seu cotidiano?

Eu moro ainda na beira do rio, tenho contato ali com os pescadores, gente que para no meu porto, sobe lá, quer vender um peixe, eu chamo o barqueiro que me leva pra praia, agora a única coisa que eu lastimo lá de Roraima é que os atores políticos são os mesmos, nós temos aí um cenário que não muda, mandatos de 20 anos, e todos envolvidos com corrupção. E são pessoas que não apoiam o roraimeira, mas ao contrário. Eu digo o sempre o seguinte, ‘ninguém pode deter um temporal” e o roraimeira sempre vai marcar. Se não conseguimos o que pretendíamos pelo menos fizemos um pouco.